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Governança da Internet na Era da Vigilância

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Se os arquivos internacionais da Internet registrarão 2013 como o ano de Edward Snowden e das revelações dos programas de vigilância da Agência de Segurança Nacional (NSA) pela mídia, o grande tema de 2012 foi a mobilização contra uma pretensa tentativa das Nações Unidas (ONU) em assumir o controle da Internet. Este post recapitula o debate jurídico e político em torno da negociação dos Regulamentos de Telecomunicações Internacionais (ITRs) pela Conferência Mundial de Telecomunicações Internacionais 2012 (WCIT-12) e oferece algumas previsões sobre a agenda de Governança da Internet (IG) para 2014.

União Internacional de Telecomunicações
Com sede em Genebra, Suíça, a história da União Internacional das Telecomunicações (UIT), remonta aos primeiros acordos de interconexão internacionais de telégrafo em meados do século XIX, tornando-se o órgão mais antigo do Sistema da ONU. Atualmente, suas principais funções incluem a alocação de espectro radioelétrico mundial e órbitas de satélites, o desenvolvimento de normas técnicas de interconexão de redes e tecnologias e a promoção do acesso às telecomunicações em todo o mundo.

Essas atividades são conduzidas majoritariamente por seus membros, incluindo 193 Estados e mais de 700 empresas do setor privado e instituições acadêmicas, por meio de negociações baseadas em consenso em Comissões de Estudo técnicas dos setores de Radiocomunicações, Normalização Desenvolvimento.

marco  legal da UIT engloba quatro tratados internacionais: Constituição, Convenção, Regulamentos Radiocomunicações e Regulamento das Telecomunicações Internacionais. A Conferência de Plenipotenciários, o Conselho, a Secretaria-Geral e outras quatro conferências mundiais são os principais órgãos políticos que, ao cabo, supervisionam a estrutura orgânica da UIT . Cada um deles cumpre mandatos específicos na determinação das políticas gerais da UIT, avaliação de suas atividades globais e, eventualmente, alteração dos tratados.

UIT e Governança da Internet
A UIT tem pressionado por um papel mais central em matéria de políticas públicas internacionais relacionadas à Internet há vários anos. Como consequência de uma proposta da Tunísia na Conferência de Plenipotenciários de 1998 (PP-98), a Assembleia Geral da ONU aprovou a criação de uma Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (CMSI ou WSIS), realizada em duas fases, em 2003 e 2005.

A Cúpula foi conduzida pela UIT em colaboração com vários outros órgãos das Nações Unidas, resultando em uma série de compromissos políticos internacionais não-vinculantes, com o objetivo de superar a exclusão digital global. No entanto, o objetivo subjacente de muitos países na WSIS era a distribuição do poder dos Estados Unidos no processo de formulação de políticas de Governança da Internet.

Em típico vernáculo do direito internacional, a WSIS resultou em (i) reconhecimento da necessidade de cooperação aprimorada no futuro em questões de políticas públicas internacionais relacionadas à Internet, (ii) reconhecimento de que o processo em direção à cooperação aprimorada deve avançar o mais rapidamente possível, consistente com o processo legal e (iii) criação do Fórum de Governança da Internet (§§ 69, 71 e 72 da Agenda de Túnis para a Sociedade da Informação 2005).

No entanto, são os movimentos da UIT em direção a questões mais estritas de gestão do Sistema de Nomes de Domínio (DNS), alocação e distribuição de numeração de Protocolo de Internet (IP), sistema de servidores raiz da Internet, segurança cibernética e regulação de serviços de Internet que levantam preocupações econômicas e políticas para organizações incumbentes de Internet (majoritariamente sediadas nos EUA). Entre outros, o Departamento de Comércio (DOC), a Internet Assigned Numbers Authority (IANA), a Internet Corporation for Assigned Names and Numbers (ICANN), a Internet Society (ISOC), a Internet Engineering Task Force (IETF), o World Wide Web Consortium (W3C) e as grandes empresas de Internet, que administram alguns dos recursos críticos de infraestrutura da Internet, em um ambiente multissetorial.

Tempestade midiática pré-WCIT
A fase de negociações da WCIT-12 recebeu muita atenção da mídia. Artigos de Forbes, Vanity Fair, FoxNews, CNET, TechCrunch, Techdirt, CircleID abordaram a revisão do tratado, juntamente com declarações de embaixador dos EUA David Gross, o comissário Robert McDowell da Federal Communications Commission (FCC), do Vice-Presidente do Google Vint Cerf. Segundo este último, Rússia, China, Síria, Arábia Saudita e outros regimes repressivos estariam interessados em intervir e obter mais controle governamental da Internet. Ele também destacou sua surpresa com algumas propostas do Brasil e da Índia, países que não estão tradicionalmente no radar dos EUA, mas que teriam demonstrado interesse em mais regulação em mercados de telecomunicações internacionais, tais como tráfego de dados e roaming. Patrick Ryan, também do Google, afirmou que algumas propostas da UIT faziam o Stop Piracy Act Online (SOPA) parecer um mero contratempo do cotidiano, e que não caberia à UIT atuar em regulação e Governança da Internet, devido à natureza aberta da Internet, o que contrastaria com sistemas estatais não transparentes da UIT.

Manifestos online do Center for Democracy and Technology, Electronic Frontier Foundation, Internet Society, Technology Liberation Front, AccessNow exigiram mais transparência e inclusão, alertaram contra os riscos de controle por parte de governo e censura que poderiam resultar de um processo a portas fechadas. Se aprovados, os novos ITRs impactariam negativamente na segurança, estabilidade e potencial inovador das redes de todo o mundo.

A Câmara dos Representantes e associações da indústria dos EUA argumentaram que a UIT não seria um ambiente verdadeiramente multissetorial, que governos repressivos aproveitariam a oportunidade para ganhar mais controle sobre os recursos críticos da Internet e desenvolver rígida regulação para transferir artificialmente receitas de empresas de Internet para operadoras de telecomunicações.

Em determinado ponto, a WCIT-12 mereceu (i) sua própria WCITleaks, página onde os documentos da UIT protegidos por senha eram publicados para o público geral, (ii) uma campanha Google Take Action contra a UIT e (iii) um kit de ferramentas e recursos Mozilla para informar e mobilizar a comunidade da Internet.

Vários meses antes da conferência começar, era evidente que uma “coluna dorsal de atenção” (“attention backbone”) para mobilização online estava formada, com sites maiores amplificando as vozes de atores menos visíveis.

Conferência Mundial de Telecomunicações Internacionais 2012
Quando a WCIT-12 finalmente se reuniu, de 3 a 14 dezembro de 2012, em Dubai, 1.630 participantes de 151 países, setor privado, sociedade civil e academia se reuniram para negociar os Regulamentos de Telecomunicações Internacionais, sob a liderança de representantes governamentais dos Estados Membros. E nem UITICANN , jornais ou Academia foram capazes de alterar o clima de uma guerra fria digital .

documento de trabalho inicial, com 253 páginas, não só continha dispositivos relacionados a Governança da Internet, mas também propostas sobre o direito humano de acesso à comunicação, segurança na utilização das tecnologias de informação e comunicação (TIC), proteção dos recursos críticos nacionais, marcos regulatórios internacionais, cobrança e contabilidade, tributação, interconexão e interoperabilidade, qualidade do serviço, neutralidade de rede, convergência, roaming móvel internacional, meio ambiente e mudanças climáticas.

Muitas propostas foram retiradas e reformuladas durante a WCIT-12, e a conferência aprovou a versão final do ITRs sem consenso sobre a redação e interpretação dos principais dispositivos relativos a:

  • > o significado de um direito de acesso dos Estados Membros aos serviços de telecomunicações internacionais;

  • > se os ITRs só se aplicam a empresas de telecomunicações ou também aos Provedores de Serviços de Internet;

  • > se estava suficientemente claro que os ITRs não se aplicam aos aspectos relacionados ao conteúdo de telecomunicações;

  • > o estabelecimento de pontos de troca de tráfego de telecomunicações regionais (telecommunication traffic exchange points) e como eles se distinguem de pontos de troca de tráfego de Internet (Internet exchange points);

  • > a eficácia de se determinar medidas de segurança sejam implementadas, assim como o risco de colocar restrições ao conteúdo trafegado na Internet;

  • > o papel da UIT na Governança da Internet, em sentido estrito.

Segundo Richard Hill, ex-funcionário sênior da UIT, a conferência resultou em algumas conquistas: a participação ativa de várias regiões do mundo, um amplo acordo em 90% do texto do tratado, a identificação e discussão de questões-chave, e um plano para continuar as discussões. No entanto, alguns dispositivos se mostraram controversos, levando a uma divisão entre os membros da UIT e duras críticas sobre artigos específicos. Ao cabo, 89 Estados-membros assinaram o tratado, enquanto 55 não o fizeram, incluindo os Estados Unidos. Hill defende, porém, que o tratado pode sobreviver e ser devidamente implementado se a análise jurídica prevalecer sobre considerações de ordem política e econômica.

Em seu blog pessoal, o Bill Smith, do PayPal, discorda fortemente da análise de Hill. De acordo com Smith, o artigo 32 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados desfavorece qualquer interpretação de que o tratado não é direcionado a regular as questões de Governança da Internet. Ele repete as preocupações do governo dos EUA no sentido de que, mesmo a palavra “Internet” não sendo mencionada no documento, haveria possíveis implicações ao conteúdo e controle da liberdade de expressão, por exemplo, no dispositivo que solicita aos Estados Membros adotarem as medidas necessárias para evitar a propagação de comunicações eletrônicas em massa não solicitadas e minimizar o seu impacto sobre os serviços de telecomunicações internacionais (um longo termo usado para evitar a palavra “spam”, normalmente associada à Internet).

Caminhos a seguir
Desde Dubai, novos fatos e acontecimentos políticos mundiais começaram a apontar caminhos possíveis. A tomada da Internet pela UIT não se consumou, e Fórum Mundial de Políticas de Telecomunicações/TIC 2013 (WTPF-13amplificou a mensagem de que muitos países desenvolvidos e em desenvolvimento estão interessados na redistribuição de capacidades de Governança da Internet.

episódios envolvendo Snowden e NSA impuseram novos desafios ao governo e empresas dos EUA para negociarem temas de Governança da Internet no cenário internacional. Porque grande parte da crítica dos EUA ao processo da WCIT-12 estava calcada nos valores de liberdade de expressão e proteção à privacidade online, sua posição perdeu bastante credibilidade. Em resposta, imagina-se que outros países reagirão de forma protecionista, tanto com medidas econômicas quanto de segurança.

A Presidenta do Brasil Dilma Rousseff, depois de ter suas comunicações pessoais espiadas pela NSA, abriu a Assembleia Geral das Nações Unidas 2013 afirmando que a ONU deve desempenhar o papel principal na regulação do comportamento dos Estados, de forma a respeitar os direitos humanos online. Ela também clamou pelo estabelecimento de um novo quadro internacional para a governança e o uso da Internet, inspirado em projeto de lei que está sob árdua negociação no país (Marco Civil da Internet).

Ao passo que Dilma nunca mencionou que a UIT seria o local adequado para essas negociações, o ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva sugeriu, em 2009, que a UIT deveria liderar o esforço de coordenação de segurança cibernética internacional e fazer parte de outras iniciativas de Governança da Internet, como o IGF .

Fadi Chehadé, CEO da ICANN,  reagiu rapidamente à declaração de Dilma na ONU e sugeriu que o Brasil sedie uma Cúpula Mundial de Governança da Internet, em abril de 2014, onde se espera que a internacionalização da ICANN e o um quadro global para a IG sejam os principais temas. É um claro esforço para desviar a atenção internacional da Conferência Mundial de Desenvolvimento das Telecomunicações 2014 (CMDT-14) e WSIS 10 Evento de Alto Nível, ambos organizados pela UIT, que também terão lugar em abril de 2014, no Egito. Isso adiciona um passo fundamental no longo caminho de processos de Governança da Internet em direção ao Processo de Revisão da WSIS (WSIS+10).

A UIT também sediará sua Conferência de Plenipotenciários 2014 (PP-14), em outubro, na Coréia, para rever sua Constituição e Convenção, os tratados internacionais que regem a totalidade da UIT, e onde provavelmente surgirão novas propostas controversas por parte dos Estados Membros. Em particular, os Membros da UIT negociarão uma nova Constituição estávela definição do termo TIC (que em última análise pode determinar o mercado afetado por seu aparato regulatório), o papel da UIT em segurança cibernética. Todos esses fatores combinados podem reviver o ímpeto de alguns países por ampliar o mandato da UIT em assuntos de Internet.

Algumas alternativas dos Estados Unidos
Em meio às incertezas do momento para a Governança da Internet, alguns grupos têm defendido um movimento de “suspensão de recursos à UIT” (“Defund ITU”). Tão logo que o encontro em Dubai se encerrou, a associação North American Network Operators’ Group iniciou uma petição na Casa Branca exigindo que o governo dos EUA cessassem as contribuições financeiras à UIT. Em setembro passado, os republicanos Ajit Pai, Comissário da FCC, e Greg Walden, político do Oregon, retomaram a ideia de retirada de contribuições financeiras à UIT como um recurso contra a regulamentação da Internet na ONU, e Eli Dourado detalhou como fazê-lo. Se essa proposta ganhar impulso, a Internet poderá testemunhar uma nova campanha de mobilização online contra a UIT.

No início de outubro, a ICANN e várias organizações centrais à coordenação da infraestrutura técnica da Internet emitiram uma declaração clamando pela “aceleração da globalização” das funções desempenhadas pela ICANN e a IANA, devido à “forte preocupação com a perda de confiança dos usuários da Internet a nível mundial, resultante das recentes revelações de monitoramento e vigilância generalizados.” Comentaristas interpretaram este movimento como uma tentativa de desviar o controle para longe dos EUA, o que poderia levar à balcanização da Internet e que a ICANN poderia abrir caminho para que governos exerçam maior controle sobre as comunicações via Internet, novamente sob o argumento de que o governo dos EUA tem se mostrado pouco confiável no tema. Esse desenvolvimento representa uma séria preocupação se a Internet continuará a ser esse espaço vibrante marcado pela pouca autoridade de supervisão central.

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Notas do autor: Enquanto este texto era vertido para o português, teve lugar em Bali, Indonésia, o Fórum de Governança da Internet 2013, entre 21 e 25 de outubro. Até o momento não há clara definição sobre o formato e escopo da Cúpula Mundial de Governança da Internet, em 2014, proposta pela. Uma das principais premissas é que o evento não se restrinja a um encontro de governos e que reflita adequadamente o modelo multissetorial de Governança da Internet no Brasil, com representatividade ativa de governos, setor privado, sociedade civil e comunidade técnica da Internet, conforme os respectivos papéis que desempenham na Sociedade da Informação, nos termos da WSIS.

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Este texto foi originalmente publicado, em língua inglesa, sob o título “Internet Governance in the Age of Surveillance”, no blog The Bolt, do Berkeley Technology Law Journal, em 21 de outubro de 2013, e pode ser acessado em http://btlj.org/2013/10/21/internet-governance-in-the-age-of-surveillance/.


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